terça-feira, 20 de maio de 2014

O orçamento australiano para o próximo ano e a crise política na Austrália

O blog está as moscas, eu sei… Em minha defesa, esses últimos 2 meses foram bem complicados, de muitas mudanças pessoais e eu confesso que estava sem ânimo nenhum pra nada, e o blog entrou nessa onda de desânimo. Um dia conto aqui o que se passou, mas hoje o assunto vai ser outro.

Há umas 2 semanas foi liberado o orçamento da Austrália para o ano fiscal de 2014-2015 (lembrando que aqui na Austrália o ano fiscal vai de 1 de julho a 31 de junho do ano seguinte). O anúncio foi feito pelo Joe Hockey, que nada mais é do que o Treasurer (tesoureiro) do país. E desde então só se fala nisso por todos os lados!

Primeiro deixa eu contextualizar para os que não conhecem a história política da Austrália. Como todos devem saber, a Austrália é parlamentarista e o equivalente ao nosso presidente é o primeiro-ministro. Não vou entrar nos detalhes sobre a história política da Austrália, primeiro porque eu não sou especialista, segundo porque não quero transformar esse post em um blá blá blá político chato. O que interessa pro que vou falar sobre o orçamento é que durante mais ou menos 7 anos o primeiro-ministro australiano era do Labor Party (partido trabalhista, de centro-esquerda), primeiro representado pelo Kevin Rudd, depois pela Julia Gillard.

Em 2013, saiu vitorioso nas eleições para primeiro-ministro o Tony Abbott, do Liberal Party of Australia (partido liberal, de centro-direita). Eu particularmente nunca gostei do Tony Abbott (e nem vou dizer que é por ele ser centro-direita, hoje não vou entrar na discussão de preferências políticas) por conta do discurso homofóbico dele e a insistência em impor sua visão religiosa quando trata de políticas públicas (o Estado não deveria ser laico??).

Mas enfim, nunca fui fã dele, mas também nunca pesquisei muito sobre suas promessas em termos de política. O que eu sabia era apenas que ele tinha prometido a licença maternidade remunerada (um absurdo a Austrália não ter, mas isso é assunto pra outro post) e uma redução no acolhimento de refugiados (o que também é uma questão complexa e assunto pra outro post). Ambas as promessas ele cumpriu, by the way, mas pelo visto foram as únicas...

Retomando o fio da meada: em pouco menos de 1 ano de governo chegou a hora do Tony Abbott apresentar o orçamento pro próximo ano. E aí toda a popularidade que o elegeu foi por água abaixo... Mesmo quem o apoiava ficou indignado com a extrema dureza do novo orçamento.

Esse site aqui tem um ótimo be-a-bá sobre o orçamento, mas basicamente o que foi decidido foi: corte nos investimentos na saúde e educação; corte no serviço público, na ajuda humanitária, nos benefícios sociais para desempregados, jovens, casais com filhos, pensionistas; corte nos programas indígenas, no programa de refugiados, na concessão pública de TV e rádio; aumento do GST (imposto sobre produtos e serviços), além de um aumento nos impostos para que todos tenham que pagar pela dívida externa australiana.

Aí começa a primeira falácia: no anúncio do orçamento o Joe Hockey fez questão de dizer que TODOS iriam pagar pela dívida externa australiana, inclusive políticos e a classe alta (chamada aqui de high-income earners, pessoas que ganham acima de $180 mil por ano, lembrando que o salário mínimo na Austrália é de cerca de $32 mil por ano, e a média de salários fica em torno de $60 mil por ano). Só que isso é conversa pra boi dormir, claro. Basta uma análise um pouco mais detalhada pra se desmascarar isso:

Quem ganha acima de 180k por ano vai pagar apenas um debt levy (a taxa para pagar a dívida externa australiana) de 2% ao ano (detalhe: apenas sobre o que passar dos 180k) por 3 anos. Já os low-income earners perdem até 10% de seu income anual com o novo orçamento (esse site explica bem isso).

Quer dizer, é aquela máxima do princípio da igualdade: igualdade não é tratar todos de forma igual, e sim tratar de forma igual os iguais e diferente os diferentes. Sim, porque quando o Joe Hockey diz que todos vão pagar a mesma cota, digamos que $5.000 por ano para facilitar a conta, isso tem um impacto absurdamente diferente em uma família que recebe $35 mil por ano e outra que recebe $180 mil! É só fazer as contas, enquanto a primeira arca com cerca de 14% da sua renda, a segunda arca com apenas 2%! Só imbecil não percebe isso!

O fato é que essa taxa aliada ao corte drástico dos benefícios sociais (cota extra para uso do Medicare – o sistema público de saúde -, redução do youth allowance, do seguro desemprego, do auxílio a famílias com filhos e as famílias de pais solteiros, etc etc etc) o impacto será enorme nos pensionistas, nas famílias com filhos pequenos, e muitos outros.

(parentesis: quanto a esse último que mencionei (família com filhos pequenos) o Joe Hockey ainda teve a coragem de dizer que os pais que param de trabalhar para cuidar dos filhos o fazem por escolha, e por isso não podem esperar ter benefícios do governo. Como se fosse viável para os 2 pais trabalharem quando não há childcare suficiente no país! Em alguns bairros a fila de espera para uma vaga em childcare (a famosa creche) pode ser de mais de 1 ano, e quando se consegue vaga é pra no máximo 2 dias da semana (ah, e claro pagando caro, entre $80 e $150 a diária, dependendo do bairro). Como ele espera que ambos os pais trabalhem? Com quem deixar os filhos? Com babá, pagando $20 a hora, sendo que o salário do australiano médio ($60 mil por ano) equivale a pouco menos de $25 a hora? Só pode ser brincadeira...)

A segunda falácia que envolve o orçamento é que a justificativa do Tony Abbott pra esse arrocho extremo nas contas é a “imensa” dívida australiana. Ocorre que, segundo seus opositores, essa desculpa é das mais esfarrapadas, pois a situação fiscal da Austrália está longe de estar em crise. Primeiro porque há denúncias que foi o próprio Coalition (o partido vencedor das últimas eleições, e a colisão que elegeu o Tony Abbott) que dobrou os gastos do governo desde que chegou ao poder em 2013. E o alegado déficit fiscal é por muitos considerado uma falácia, já que o débito da Austrália é de apenas 11% do GDP (gross domestic product, ou produto interno bruto), o terceiro menor entre os países do OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, também chamada de "Grupo dos Ricos", porque os 34 países participantes produzem juntos mais da metade de toda a riqueza do mundo).

Fora que é curioso como o governo alega estar cashless, mas tem $245 milhões para investir no “school chaplains program” (um benefício que será concedido para as escolas que contratarem chaplains, chapelões na tradução literal, padre na ampla) e promover o ensino religioso nas escolas. Esse exemplo foi só pra mostrar a parte que me irrita da política do Tony Abbott, impondo sua religião como regra no ensino fundamental, mas há outras denúncias de gastos públicos inexplicáveis para um “momento de crise”.

Se a verdade está com o governo e seu discurso alarmista de déficit fiscal, ou com a oposição, cabe a cada um tirar suas conclusões. O que me enerva é ver brasileiros que moram aqui apoiando o novo orçamento com o discurso de que “é justo sim pois vai afetar todo mundo, e o corte de benefício vai ser bom pra acabar com a mamata”. Primeiro que não vai afetar todo mundo igualmente, como já mostrei acima. Quando a segunda parte do discurso, só denota que o cidadão sai do Brasil mas a mentalidade imbecil contra benefício social e a favor da meritocracia não sai dele! É como dizer: “eu ganho um salário bom, tenho uma vida confortável, os que não têm acesso a isso que se explodam”. E nem venha dizer que apoiar benefício social é coisa de comunista/socialista, e essa baboseira toda, pois isso é uma realidade nos países desenvolvidos, inclusive os com governos de direita! Welfare (bem-estar social) é a base de toda sociedade evoluída, isso é incontestável!

O que me consola é saber que essa falta de empatia não está enraizada na sociedade australiana, daí os inúmeros protestos contra o novo orçamento (veja aqui e aqui). Aliás, em recente pesquisa de opinião, 63% dos entrevistados disseram que o novo orcamento nao é justo, 53% pensam que ele é ruim para o país e a taxa de desaprovação do atual governo disparou (separei algumas noticias aqui e aqui).

Enfim, o orçamento ainda não passou no Parlamento, e tendo em vista a enorme desaprovação popular, é possível que a oposição ganhe forca e muitas das medidas sejam vetadas. Cogita-se também o impechment o Tony Abbott pela quebra das promessas que ele fez na corrida eleitoral do ano passado. Aliás, esses dias eu vi um post excelente no facebook sobre isso:



Tenho que confessar que não tenho TV em casa (quer dizer, não tinha, até ontem, finalmente me rendi... rs), não lia jornais australianos com a freqüência que deveria, e só comecei a ler mais por conta do orçamento. Agora, se eu soubesse que a política aqui era tão divertida já tinha me interessado antes! Ontem eu estava vendo alguns vídeos no Youtube sacaneando o Tony Abbott e a sua completa falta de habilidade para discurso político. Quem entender bem inglês pode assistir nesses vídeos, hilários:

http://www.youtube.com/watch?v=MCVP2gvC32U

http://www.youtube.com/watch?v=bGyc08otfYk

http://www.youtube.com/watch?v=V-WqnTrG204

Eu já nunca simpatizei com esse cidadão, como disse no início do post, e agora menos ainda. Vamos combinar, se o cara lança um orçamento super controverso e quebrando a maioria de suas promessas de campanha, o mínimo que pode fazer é se preparar pra responder as críticas! Ao invés disso ele parece um imbecil balbuciando e balançando a cabeça sem dizer nada, que nem aqueles cachorrinhos que de brinquedo que se coloca no carro, saca? haha By the way, me chamou a atenção a forma agressiva e sarcástica com que os jornalistas tratam ele. Não me lembro de jamais ter visto no Brasil um jornalista atacando tão duramente um chefe de governo, em plena entrevista televisionada.

Resumindo o longo post (sorry, o assunto é extenso e eu não cobri nem a metade...): o fato é que uma crise política se instalou na Austrália e ainda dará muito pano pra manga. E praqueles que acham que política é chato e não merece sua atenção, tá na hora de repensar isso. Não resta dúvida que esse novo orçamento vai impactar fortemente a sociedade australiana, e se vc pensa em imigrar pra cá, ou já imigrou, vai impactar vc também, diretamente. Seja vc estudante ou residente.

8 comentários:

  1. Galera tá puta da vida, né? rs

    Nada contra o partido em si (não tenho ainda como opinar), mas acho esse cara um babaca de marca maior.

    Uma coisa que achei curiosa é isso do budget anual. Obviamente temos isso no Brasil, mas parece muito menos maleável, as coisas muito independentes uma da outra. Desconheço que o governo bote no papel, que possa mudar o valor repassado a saúde ou às escolas por ano. Mesmo os benefícios (como saúde pública) são garantidos por lei, não dá pra mudar porque o governo mudou. Muito menos flexível, pra ser bem sincera.

    E sim, não se fala em outra coisa. As críticas são severíssimas, cartoons e TV sem menor medo de chamá-lo de dickhead e etc.

    E obviamente eu tb fui afetada. A população é muito mais politizada (e as crianças incentivadas a participar!) do que no Brasil. E não no sentido de partido, não.

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  2. Acabei de chegar na Australia e fiquei passada com este budget. Gostei muito de ler seu texto porque estou meio perdida, fiquei com a sensação de que foi péssimo,mas sem ter muita informação para avaliar - vou ler os links para ter uma ideia melhor. Acompanhei as pesquisas e parece que a reprovação foi geral - felizmente.
    E fiquei chocada com esta história dos chapelões (ahn???), e eu que achava que aqui estado e religião estariam mais separados :(

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  3. "E nem venha dizer que apoiar benefício social é coisa de comunista/socialista, e essa baboseira toda, pois isso é uma realidade nos países desenvolvidos, inclusive os com governos de direita! Welfare (bem-estar social) é a base de toda sociedade evoluída, isso é incontestável!"

    Como diria o Cumpadi Washington: "Sabe de nada inocenti!!!"

    Esse tal de Welfare State quebrou diversos países europeus, vide Grécia, França, Espanha (que além de tudo teve bolha imobiliária), países do Reino Unido, Italia e etc... Que hoje estão tendo que tomar medidas austeras para corrigir esse enorme erro...

    O que o Tony Abbot está fazendo é tentar evitar que o remédio seja mais amargo depois...

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    1. Sr. economista do É Tchan, o dia que welfare for considerado um problema economico você me avisa pra eu parar de pagar 40% da minha renda anual em impostos.

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    2. Sr. Pagador de Impostos,

      Quando o senhor tiver a opção de não pagar impostos, faça um post sobre como conseguiu essa proeza que eu tb quero. Talvez o senhor não saiba, mas pagar tributo não é uma opção....

      Contra fatos, não há argumentos... O que eu escrevi é a pura verdade...

      Welfare não é um problema? Quem paga a conta? Basta imprimir dinheiro? Não existe almoço grátis... Por acaso, hospitais, escolas e etc caem do céu? Médicos, professores e etc trabalham de graça?

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    3. Pra bom entendedor meia palavra basta meu caro...

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    4. Pagar impostos so nao e uma opcao para quem nao e rico.
      Esse pessoal que voce ve na midia que tem vilas na Italia (Ex.: George Clooney, Madonna), castelos no Reino Unido (Ex.: Madonna, Sir Richard Branson), Ilhas no Caribe (Ex.: Sir Richard Branson), nao pagam um centavo de imposto de renda.
      Como eles fazem? Simples. Eles sao Tax Exiles.
      Nao vivem em nenhum lugar por mais de 6 meses. Na verdade a regra e viver em cada lugar por 4 meses, e nao pagar um centavo de imposto de renda.
      O que voce ia preferir, comprar uma mansao em cada pais por ano, mansao que valorizara com o tempo e patrimonio seu, ou pagar isso em imposto. Por isso que nenhum milionario paga imposto. Simples (amoral) e prefeitamente legal.

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  4. Políticos....só muda o CEP, no caso, Post Code...rs.

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